O silêncio perdido: como e porque nos afastamos da escuta interior
Num mundo cheio de ruídos e distrações, como podemos resgatar o contato conosco mesmos?
Tenho pensado muito no papel que o silêncio desempenha em nossas vidas. Minha impressão é que a sociedade moderna está perdendo o contato com ele, e por isso é hora de criar formas de resgatá-lo. Será que ainda sabemos o que ele realmente significa?
Poucos sabem que dentro de qualquer música que ouvimos está embutido o silêncio, porque sem ele não escutaríamos nada.
Por outro lado, percebê-lo e vivenciá-lo está cada vez mais desafiador, já que o mundo moderno não para de aumentar o volume dos seus ruídos.
Hoje, parece que o volume cada vez mais alto dos ruídos das cidades grandes, das fábricas e das casas esconde o medo de entrarmos em contato com o silêncio dentro de nós.
E se, em vez de reagirmos ao crescente ímpeto de fazer mais barulho, nos voltássemos para dentro em busca de um lugar de calma e tranquilidade? Talvez assim pudéssemos resgatar nossa saúde integral.
O silêncio é uma escolha, e o ruído cada vez maior dos grandes centros quer abafá-la. Seremos capazes de escolhê-lo para encontrarmos a nós mesmos?
A música é feita de som e silêncio (pausas)
O som, quando viaja pelo ar, gera contrações e rarefações na matéria do ar (moléculas de oxigênio). Esse movimento não significa que as moléculas são transportadas de um lugar para o outro, mas sim que existe uma transferência de energia entre as moléculas.
A vibração sonora, composta de contrações e rarefações de moléculas de oxigênio, pode ser comparada a um pêndulo, com o seu movimento de vai e vem.
Visualize o pêndulo de um relógio de parede. Quando ele chega em um extremo, ele repousa para depois voltar para o outro extremo, e repousa novamente para repetir o ciclo.
Assim, existem momentos de repouso nas vibrações sonoras, ou seja, dentro do som existe a ideia de complementariedade. Veja a ideia que o autor José Miguel Wisnik desenvolve em seu livro “O Som e o Sentido”:
“O som é, assim, o movimento em sua complementariedade, inscrita na sua forma oscilatória. Essa forma permite a muitas culturas pensa-lo como modelo de uma essência universal que seria regida pelo movimento permanente. O círculo do Tao, por exemplo, que contém o ímpeto yang e o repouso yin, é um recorte da mesma onda que costumamos tomar, analogicamente, como representação do som”.
A figura clássica do yin-yang mostra essa complementariedade, e fica fácil visualizar a manifestação do som e do silêncio. Todos os sons e músicas, agradáveis ou não, seguem esse princípio.
Identificar o silêncio em um som ou música pode ser desafiador, porque aparentemente o que existe é apenas uma sequencia de sons.
É preciso desenvolver uma certa sensibilidade para sentir o silêncio em uma música.
Você pode treinar isso através da arte de um dos maiores gênios do jazz, Miles Davis. Desfrute, e tenha um gostinho do que estou falando.
“O importante não são as notas que você toca, mas as que você não toca.”
Miles Davis
Lembre-se: se o som não tivesse pausa (silêncio) o tímpano humano não funcionaria, porque ele responde vibrando de acordo com as compressões e rarefações da vibração do ar que chega no canal auditivo (como um tambor).
Ruído e poder
Paisagem sonora é um termo que foi criado e desenvolvido pelo musicoterapeuta canadense R. Murray Schaffer. Trata-se do ambiente sonoro, composto de sons agradáveis e desagradáveis, fortes ou fracos, ouvidos ou não, com os quais convivemos diariamente.
Hoje em dia, podemos afirmar que a paisagem sonora dominante nos grandes centros urbanos é o ruído alto, comumente chamada de poluição sonora.
Mas nem sempre foi assim. Em 1700, numa grande cidade europeia como Viena, por exemplo, os bombeiros atendiam as ocorrências batendo sinos em carroças. Não existiam carros e aviões, e nem máquinas barulhentas. E o sino da igreja era ouvido na cidade toda.
Porém, o progresso chegou com a invenção da máquina a vapor, e isso mudou totalmente a relação das pessoas com o som e com o ruído.
O que ficou conhecido como a primeira Revolução Industrial introduziu uma quantidade imensa de novos sons artificiais (das máquinas) que foram se sobrepondo aos sons naturais que os humanos ouviam.
O silêncio começou a ficar mais escasso, principalmente para os trabalhadores das fábricas, que inclusive começaram a sofrer com as consequências da exposição a níveis elevados de ruído.
Pior do que isso, com o passar das décadas e séculos o nível de ruído foi aumentando chegando hoje a níveis muito preocupantes. Assim como temos uma emergência climática, temos também uma emergência sonora, mas quase ninguém fala dela.
É uma situação dramática que tem relação direta com o poder, pois é muito claro o aumento dos decibéis ao longo do desenvolvimento da nossa sociedade. O decibel é a unidade de medida da potência sonora, do volume do som (é uma escala logarítmica, ou seja, uma aumento de 10 dB corresponde a um aumento de 10x na potência sonora).
Para se ter uma ideia, a primeira máquina a vapor emitia aproximadamente 85 dB (em 1760), e atualmente a decolagem de um avião a jato emite 120 dB.
Hoje temos que conviver com escapamentos abertos de motos e carros, com sirenes altíssimas (sim, porque ela tem que sobressair no meio de tanto barulho), com turbinas de avião e tantas outras fontes de ruído.
O poder tem uma relação direta com o ruído. Quanto mais ruído, maior é o poder, e por isso é preciso gritar, atirar, jogar mísseis e bombas, acelerar a moto no último.
Veja o que Murray Schaffer diz sobre isso:
“O aumento da intensidade da potência do som é a característica mais marcante da paisagem sonora industrializada, A indústria precisa crescer, e portanto seus sons precisam crescer com ela. Esse é o tema estabelecido nos últimos 200 anos. De fato, o ruído é tão importante como meio de chamar a atenção que, se tivesse sido possível desenvolver a maquinaria silenciosa, o sucesso da industrialização poderia não ter sido tão completo. Para maior ênfase, digamos isso de forma mais drástica: se os canhões fossem silenciosos, nunca teriam sido utilizados na guerra”.
Nesse mundo onde impera o poder pela força e a consequente poluição sonora, o silêncio foi perdendo o seu lugar. A crença no “quanto mais melhor” foi ganhando cada vez mais aceitação, e deixamos de perceber a presença sutil do silêncio nos sons que ouvimos.
O silêncio é presença, e não ausência
John Cage é um compositor americano do século passado que veio para revolucionar a forma como nos relacionamos com a música.
Ele era um sujeito bem “fora da caixa”, e uma de suas contribuições foi o desenvolvimento da música aleatória, quando ele iniciou os estudos em filosofia indiana, zen budismo e I Ching na década de 40.
A sua peça mais famosa é 4’33’’, que foi composta em 1952, e é um marco em sua música.
É uma peça polêmica que eu te convido a assistir agora.
Basta se preparar para não ser interrompido nesse breve período de 4 minutos e meio. Assista sem fone de ouvido. Isso vale também para você que conhece a obra. Será uma nova experiência, tenha certeza.
Nessa obra, Cage busca enfatizar que o silêncio não é ausência de som, mas sim a presença constante de sons ao nosso redor e dentro de nós. É uma celebração à escuta, uma vez que transforma qualquer ruído do ambiente em música.
É uma forma de ver a música que quebra a noção tradicional de que precisa ser feita com instrumentos que tocarão notas organizadas. Não! Qualquer som emitido no espaço acústico é música.
Ele sempre foi um grande amante dos sons, qualquer tipo de som, e tinha uma visão bem zen budista sobre isso. O som é o que é, e a música é parte disso.
Certa vez, no início da década de 50, ele teve uma experiência muito impactante que modificou profundamente a sua relação com o silêncio e a música: ele visitou uma câmara anecoica na Universidade de Harvard.
Esse tipo de câmara é um ambiente projetado para eliminar qualquer reflexão sonora e bloquear ruídos externos. As paredes, o teto e o chão são cobertos por materiais que absorvem o som, criando um ambiente de (quase) silêncio absoluto.
Clique aqui para conhecer uma câmara dessas.
O que aconteceu quando Cage entrou nessa câmara foi que ele escutou dois tipos de sons, um mais agudo e outro mais grave. O engenheiro acústico que o acompanhava explicou que o som mais agudo era o som do seu sistema nervoso, e o som mais grave era o som do sangue circulando em seu corpo.
Assista aqui num vídeo bem curtinho o próprio John Cage contando essa história.
Esse momento foi uma revelação, porque ele percebeu que o silêncio absoluto não existe enquanto estivermos vivos. Sempre há algum tipo de som, mesmo que seja o do próprio corpo.
A partir desse dia ele passou a ver o silêncio não como ausência de som, mas como um espaço que se abre para perceber mais profundamente os sons que nos rodeiam.
Isso foi o que o levou a compor uma obra como 4’33’’, que algumas pessoas pensam que é uma brincadeira (o silêncio anda em baixa com elas).
Destacar a importância do silêncio na música levou ao desenvolvimento da escuta ativa, com a ideia de que qualquer som, seja agradável ou desagradável, faz parte da música e do espaço acústico em que estamos inseridos.
Eu sou um grande fã de John Cage justamente porque ele trouxe à tona uma conversa necessária, que passa pela forma como consumimos os sons à nossa volta.
Quando paramos para apreciar 4’33’’, o que escutamos? Os ruídos e sons do ambiente fazem parte da música? E os nossos pensamentos, fazem parte dela também?
Cage nos convida a meditar sobre o significado do som e do silêncio, e isso pode mudar a forma como vemos o mundo.
“Nenhum som teme o silêncio que o extingue”.
John Cage
O medo do silêncio
A sociedade moderna abusa do barulho e do ruído, e não dá muita bola para o silêncio. Será que ainda conseguimos nos relacionar com ele, para escutar a nós mesmos?
Outro dia li uma frase que me impactou bastante, do livro “A História do Silêncio”, de Alain Corbin.
“Atualmente, é difícil fazer silêncio, o que impede de compreender essa palavra interior que acalma e satisfaz. A sociedade nos impõe dobrarmo-nos ao ruído, fazendo parte de tudo em vez de escutarmos a nós mesmos. Assim, encontra-se modificada a própria estrutura do indivíduo”.
A forma como a sociedade moderna se desenvolve é baseada em distrações. Nós temos que fazer tudo, comprar tudo, ver tudo e participar de tudo. Sobra algum espaço para o nosso mundo interior?
Se Pascal escreveu no século XVII que “a infelicidade do homem se baseia apenas em uma coisa: ele é incapaz de ficar sozinho e em silêncio consigo mesmo”, imagine como está a situação hoje em dia, com a onipresença do celular?
Preferimos nos enganar e esquecer que precisamos nutrir uma relação autêntica conosco mesmos, a criar um relacionamento com o silêncio dentro de nós.
As infinitas rolagens de tela, os bips, as notificações, a luz da tela, e tantas outras coisas criam distrações que praticamente nos forçam a gastar tempo rolando conteúdo inútil todos os dias.
O resultado é que muitas pessoas, ao invés de reclamarem do excesso de barulho, reclamam do excesso de silêncio. Elas estão tão desacostumadas a entrar nesse espaço que quando vão para um local silencioso na natureza querem voltar logo, não suportam ficar.

Esse é um triste sintoma da nossa condição atual. Perdemos a nossa conexão essencial com os sons naturais, aqueles que nos nutrem e fazem bem. Perdemos a capacidade de simplesmente parar e contemplar. Enfim, perdemos a nossa capacidade de ficar em silêncio.
Essa desconexão faz com que fiquemos entregues aos nossos pensamentos e seu fluxo incessante de julgamentos, categorizações e negatividades. São os ruídos da nossa própria mente, que mais parecem uma estação de rádio transmitindo cacofonias intermináveis.
Desenvolvemos o medo do silêncio, que é o medo de escutarmos a nós mesmos.
“A condição básica para sermos capazes de escutar o chamado da beleza - e responder a ele - é o silêncio. Se não temos silêncio dentro de nós mesmos - se nossas mentes e corpos estão repletos de barulho - não somos capazes de ouvir o chamado da beleza”.
Thich Nhat Hanh
Precisamos resgatar nossa conexão com o silêncio para escutar o chamado da beleza e transformar nossas vidas de verdade. Precisamos perder o medo de ficar em silêncio, para assim nos conectarmos mais profundamente com o nosso mundo interior.
O silêncio como forma de autoconhecimento
Como é fazer uma refeição junto com a família ou amigos, com todos à mesa em silêncio, honrando o momento sagrado e prestando atenção ao ato de comer?
Ou como é escutar o que seu amigo ou amiga tem para falar, sem que você fique interrompendo o tempo todo com conselhos sobre o que ele ou ela tem que fazer?
Como é ficar quieto em uma discussão, esperando a poeira abaixar?
Ficar quieto é desafiador e desconfortável. Mas traz muitos ensinamentos, e o principal deles é que o silêncio é ouro, como diz o ditado.
Ele permite que uma transformação interior para o bem comece a acontecer.
Você passa a falar menos e a escutar mais.
Elimina os ruídos desnecessários da sua vida.
Preenche a sua paisagem sonora com sons e músicas que você gosta.
E ao mesmo tempo, observa o fluxo incessante de ruído mental, seus pensamentos indo e vindo na sua mente, que aos poucos vão perdendo força, diminuindo o volume.
Outros surgem, e volta a cacofonia mental.
O remédio: silêncio!
Ele restaura a condição normal de funcionamento da mente, trazendo os pensamentos obscuros à tona, para serem investigados à luz da realidade.
Ele permite que você volte a se escutar.
Portanto, escolha colocar de forma deliberada mais silêncio em sua vida.
Escolher o silêncio
Essa é uma decisão muito importante que tomamos a nosso favor.
Quanto mais silêncio colocamos em nossas vidas, mais espaço abrimos para escutar aos nossos mais profundos sonhos e anseios, aqueles que vem da nossa alma.
É um processo que leva o tempo que for necessário. O importante é começar a prestar atenção a quanto silêncio temos no nosso dia. Se for pouco, crie momentos de pausa que possam ser experimentados de forma simples.
Medite, toque um instrumento, vá para a natureza. Qualquer dessas coisas trará um benefício, e você começará a abrir cada vez mais espaço para o silêncio.
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Com Amor,
Luiz Pontes
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Excelente reflexão, Luiz! Conduz com delicadeza e profundidade uma reflexão que, embora urgente, raramente tem espaço no nosso dia a dia. Me tocou especialmente a ideia de que o silêncio não é ausência, mas presença. A presença de nós mesmos, dos sons sutis da vida, da escuta verdadeira.
Obrigado pelo texto! Muito enriquecedor! Gostaria de ser melhor relacionado com o silêncio.. Mas meus ruídos mentais são insuportaveis. Se fico sem fone de ouvido escutando música, podcast ou rádio, começo a pirar.. Ruminar..